quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

4º Episódio - Rouco ou Louco?

“Em geral, gostamos de chamar de insanidade aquilo que não entendemos.”
C. Jung


           É comum associar loucura com tudo àquilo que possa parecer novo ou diferente do que estamos costumados a ver em nosso dia a dia. Fazemos essa associação porque é mais fácil atribuir um rótulo do que evidenciar a possibilidade de outro ponto de vista ser apresentado. E assim, muitas vezes, acabamos por identificar como “estranhas” pessoas ou ideias que não correspondem a padrões pré-estabelecidos e convencionados socialmente como “normais”.
Muito do preconceito em relação aos esquizofrênicos parte de especulações como o de que seriam pessoas violentas, despreocupadas com a higiene, inconstantes e perigosas. Esses pensamentos foram validados socialmente como sendo uma verdade.  
Abaixo segue uma tirinha da Turma da Mônica retirada do livro "A política da loucura - A antipsiquiatria" de Duarte Junior (1987) para que possamos fazer algumas reflexões 

Observação: Ao clicar em cima da figura com as tirinhas você poderá obter uma melhor visualização do texto!.               

Agora vamos falar um pouco sobre o quadrinho e sobre a loucura?

No livro História da loucura na idade clássica Foucault (1999) diz que ao longo da história da humanidade, a loucura tem sido objeto de saberes, interpretações e práticas que respondem a condições sociais objetivas, perspectivas econômicas, científicas e culturais próprias de cada época. Ele ainda destaca a presença da loucura na arte e na literatura, relacionada a supostas “manifestações malignas”, às “fraquezas humanas”, ao “erro” e à “desrazão”.
Segundo Foucault (1999) a partir do século XVIII e início do século XIX, como efeito da Revolução Francesa, com o nascimento dos asilos e posteriormente dos hospícios, a loucura assume gradativamente uma conotação de “doença mental”. Para o autor Frayze-Pereira (1985) no livro “O que é loucura?” a loucura/doença mental é uma questão da psiquiatria e psicologia não concluída e longe de ser resolvida e por isso é tema de tantas discussões no meio acadêmico e científico.
No mesmo livro Frayze-Pereira cita a obra “O Normal e o Patológico”, do filósofo Georges Canguilhem, que afirma o indivíduo é doente sempre em uma relação: seja em relação aos outros, seja em relação a si mesmo e que o “normal”, não somente por etimologia, não passa de uma norma.

“[...] é preciso notar que uma norma, uma regra, se propõe como um modo possível de eliminar uma diferença. E ao se propor desse modo a própria norma cria a possibilidade da sua negação lógica [...] Nesse sentido, ‘o anormal, enquanto anormal, é posterior à definição do normal, é a negação lógica deste’ [...] uma norma só vem a ser norma, exercendo a sua função normativa ou de regulação, mediante a antecipação da possibilidade de sua infração [...] O anormal é uma relação: ele só existe na e pela relação com o normal. Normal e anormal são, portanto, termos inseparáveis. E é por isso que é tão difícil definir a loucura por si mesma.”
 (CANGUILHEM APUD. FRAYZE-PEREIRA, 1985,p. 21-22)

A partir do processo de normatização da loucura Duarte Junior (1987), diz que a “loucura” mais característica é aquela que foi classificada como esquizofrenia, que em grego significa literalmente, “mente partida”, ou mente dividida e sob esse rótulo genérico são classificados todos aqueles que de alguma forma perdem o contato com a realidade, isolando-se em um mundo particular e fantasmagórico. Sob o título de esquizofrênicos estão os “loucos” mais característicos, aqueles que em nosso dia a dia, são personagens de piadas.
O autor diz ainda que a psicologia tenta entender o comportamento humano com os mesmos métodos utilizados pelas ciências naturais, como a medicina (psiquiatria). Onde se isola o indivíduo de sua história psíquica e procura-se classificar o seu comportamento. Essa ideia é reforçada através de psicólogos que muitas vezes tentam enquadrar determinados comportamentos como sendo culturalmente inadequados e psicopatológicos em entrevistas dadas a veículos de comunicação, numa tentativa de enquadrar o sujeito na tal norma estabelecida como a adequada, e isso se deve um pouco a história da própria psicologia enquanto ciência, como já diz Prayze-Pereira:

(No século XVIII) [...] surge uma psicologia, isto é, um conhecimento da interioridade psicológica do homem, a partir da consciência pública tomada como forma universal e válida da razão e da moral para avaliar os homens. Ou seja, em sua raiz o conhecimento psicológico encontra-se inteiramente sustentado pela moral.”
(FRAYZE-PEREIRA, 1985, p. 81)

Ao analisarmos o inicio do quadrinho podemos observar quanto o personagem Cascão já está inserido num contexto cultural de padronização dos comportamentos e de expectativas sociais sobre o estado de loucura. Ao receber a mensagem do Cebolinha de que o mesmo estava rouco, esqueceu que seu amiguinho trocava o R pelo L e logo lhe atribuiu o status de louco. Percebemos o estranhamento do Cebolinha diante das falas feitas pelo Cascão.
Assim como nas escolas, universidades, locais de trabalho e o próprio meio familiar, as pessoas, aqui representadas pela Mônica e Cascão, tentam observar com distanciamento e provar/diagnosticar a “loucura” no outro constantemente.
O Cebolinha ao ver que tem um besouro vivo em seu sapato, sai correndo, volta com um pedaço de pau e tentar mata-lo, após retirar o bicho, Cebolinha tentar coçar as costas em um local não habitual sem conseguir alcançar com os dedos vai até a árvore. Para seus amigos ele pareceu estar fora de si, aparentando uma sintomatologia estereotipada da esquizofrenia (que é por muitas pessoas ainda chamada apenas de loucura) através de um comportamento desorganizado culturalmente inapropriado e com a presença de alucinações. E. Beuler in Frayze-Pereira (1987) define esquizofrenia como um termo

“Para caracterizar certos fenômenos como a fragmentação do fluxo do pensamento e a ruptura do contato afetivo com o ambiente”
(E. BEULER apud. FRAYZE-PEREIRA, 1987, p. 16).

 Nossos personagens ao observarem o comportamento do Cebolinha à distância concluíram que de fato ele estava “louco”. A Mônica e o Cascão também mudam seu comportamento demonstrando medo diante do amigo que agora é considerado “louco, violento e imprevisível”.

“O comportamento do indivíduo, quando retirado do seu contexto perde a significação e passa a ter o significado que os observadores lhe imputaram. Se a interpretação inicial já era na direção da “loucura” do Cebolinha, os dados observados apenas confirmaram tal interpretação”.
(DUARTE JUNIOR, 1987. p.42)

Também podemos observar que na sequência do quadrinho onde eles deparam-se num beco sem saída com a presença do Cebolinha eles começam a falar frases desconexas, reforçando a ideia de que conversa de “louco” é estabelecida com coisas sem muito sentido.

“O Eu nunca é louco: louco é o Outro. A loucura só pode ser reconhecida em mim através do olhar do Outro: o Eu nunca a percebe em si. Assim, é um conflito que se estabelece: o conflito do Eu x Outro.
(BIRMAN in BEZERRA JUNIOR , 1992, p.19)

Quando a mãe do Cebolinha o encontra e entrega as pastilhas para sua rouquidão o mal entendido é esclarecido. Porém, mesmo após saberem o contexto do comportamento apresentado pelo Cebolinha a Mônica e o Cascão, não satisfeitos fazem mais uma vez um diagnóstico (problema de dicção devido à troca do L pelo R) e tentam condicionar seu amigo a aprender a pronunciar o R de forma adequada.

Bem, quantas vezes nós não tentamos tomar a existência humana como algo que deve ser ordenado e lógico como nascer, crescer, trabalhar, reproduzir e morrer. Estaria essa lógica certa? E se a esquizofrenia não for o que pensamos que é? E se as características que a definem não forem visíveis e dramáticas, mas sim, ao contrário, extremamente discretas compartilhadas por cidadãos comuns que jamais entrariam em uma clínica psiquiátrica, ou fariam acompanhamento com um psicólogo?
Acredito que muitas vezes cometemos o mesmo erro que o Cascão e a Mônica, e esquecemo-nos de perguntar – Será que ele quis não quis me dizer outra coisa? Porém, parece ser mais fácil enquadrar as pessoas em estereótipos sem ao menos dar a elas a oportunidade de apontar seu ponto de vista.

É fundamental perceber a "verdade" na loucura. Não há vazio a ser preenchido, não é necessário “enquadrar” o chamado louco, moldá-lo seguindo parâmetros de normalidade para que ele seja sujeito. A experiência da loucura sugere a exposição da subjetividade de modo diferente do padrão, isto é, diverso daquele modo definido socialmente como “normal”, o que não retira do louco sua condição de sujeito.

(BIRMAN in BEZZERRA JÚNIOR, B. 1992, p.19)


Boa reflexão e até a próxima postagem!

Quadrinho retirado do capítulo V do livro "A política da loucura: a antipsiquiatria"
de João Francisco Duarte Junior.

REFERENCIAL TEÓRICO

BIRMAN, J. A cidadania tresloucada. In: BEZERRA JÚNIOR, B.; Amarante, P. (Orgs.).                               Psiquiatria sem hospício: contribuições ao estudo da reforma psiquiátrica. Rio de Janeiro:                             Relume-Dumará, 1992.

DUARTE JUNIOR, João Francisco. A política da loucura: a antipsiquiatria. 3ªed.                                       Campinhas-SP: Papirus, 1987. (Coleção Krisis)

FOUCAULT, M. História da loucura na idade clássica. 6.ed. São Paulo: Perspectiva, 1999.

FRAYZE-PEREIRA, João. O que é loucura. São Paulo: Abril Cultural/Brasiliense, 1985. (Coleção                     Primeiros Passos vol. 18)

JUNG, C. G. Presente e futuro. Petrópolis: Vozes, 1988, p.5

ROTTERDAM, Erasmo de. Elogio da Loucura. São Paulo: Martins Fontes, 1997.



4 comentários:

  1. Respostas
    1. Grande Lula!

      Em breve estarei postando mais informações, documentários e curiosidades!

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    2. Gostaria de seguir seu blog falta o gadget

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